Michael Hendrick, outro americano… credĂvel no papel de Eneias graças ao espĂrito da montagem, sustentou, apesar de adoentado, as exigĂȘncias da partitura.
Ponto de Fuga
Meu reino por um cavalo
Enfrentar a montagem de “Os Troianos”, de Berlioz, Ă© uma proeza, e Ă© um milagre que tenha dado plenamente certo; intensa, ela deixa o pĂșblico hipnotizado, sem um minuto de tĂ©dio |
Que boboca, esse Eneias! Incapaz de tomar nas mĂŁos seu prĂłprio destino, como um herĂłi que se preze. Nunca poderia ser vivido por Vin Diesel no cinema, a menos que o roteiro fosse modificado. EntĂŁo, teria que furar a barriga do cavalĂŁo, matar todos os gregos, raptar sua amada para uma praia paradisĂaca, ou virar o chefĂŁo de Cartago. Nada disso. Vive fugindo, ao sabor dos incĂȘndios, dos ventos, marĂ©s e tempestades.
Com a ideia fixa de fundar Roma e acabar sendo, no fim das contas, o responsĂĄvel pela existĂȘncia de Bento 16.
Escapa de Troia incendiada, navega às cegas, tropeça num reino sorridente [Cartago], cheio de mulheres bonitas com uma rainha que é a mais linda de todas.
Conversa vai, conversa vem, Dido, a rainha, se apaixona, quer casar e ter filhos. Eneias coça a cabeça, diz que bom, veja vocĂȘ, acho que nĂŁo vai dar, eu tenho que ir fundar Roma, os deuses mandaram e pronto.
Dido, furiosa, queima todos os presentes que eles tinham trocado e se mata. Eneias escapa, com a vozinha misteriosa que lhe cochicha na orelha: “ItĂĄlia! ItĂĄlia!”.
VirgĂlio, o poeta romano, fez um poema Ă©pico a respeito [“Eneida”], e Berlioz uma Ăłpera, nĂŁo sĂł Ă©pica, como destrambelhada na sua megalomania. Centenas de intĂ©rpretes; a queda de Troia representada no palco; cinco horas e meia de espetĂĄculo.
Enquanto São Paulo e Rio, em matéria de ópera, passam por uma seca danada, o Festival Amazonas, em Manaus, é saudavelmente maluco para montar essa superprodução.
Grandezas
Enfrentar a montagem de “Os Troianos”, de Berlioz, Ă© uma proeza, e Ă© um milagre que tenha dado plenamente certo. Intensa, ela deixa o pĂșblico hipnotizado, sem um minuto de tĂ©dio. Caetano Vilela foi responsĂĄvel pela montagem cheia de invençÔes felizes, muito poderosas nos momentos dramĂĄticos. Sem desnaturar nada, sem carnavalizar, infiltrou orixĂĄs nesse mundo da Antiguidade clĂĄssica carregado de profecias e sortilĂ©gios.
Introduziu a capoeira, que tem, por si sĂł, um espĂrito apolĂneo em sua exigĂȘncia regrada de equilĂbrio. O cenarista, Renato Rebouças, inventou um maravilhoso cavalo de Troia. Talvez faltasse apenas um pouco de atenção ao lirismo de certas cenas, como a que se passa nos jardins de Dido. Mas Ă© o de menos, diante do resultado total, levado adiante graças Ă inteligĂȘncia cĂȘnica fora do comum.
MĂĄscaras
A escrita de Berlioz pĂ”e Ă prova seus cantores. Nessa “Os Troianos” de Manaus todos foram dignos do grande compositor. Ă injusto nomear apenas alguns, mas vĂĄ lĂĄ: os brasileiros Luiza Francesconi, frĂĄgil Dido, e SĂĄvio Sperandio, imperioso Narbal [ministro de Dido].
Marquita Lister, americana, formidĂĄvel Cassandra [princesa troiana]. Michael Hendrick, outro americano, de fĂsico ingrato, mas credĂvel no papel de Eneias graças ao espĂrito da montagem, sustentou, apesar de adoentado, as exigĂȘncias da partitura.
Com eles, a beleza dessa mĂșsica soberba, propriamente incomparĂĄvel, surgia evidente. Arrastava os espectadores para as paixĂ”es, prazeres e sofrimentos da humanidade nobre e atormentada que ela faz viver.
Pilares
Ă uma alegria ouvir a [orquestra] Amazonas FilarmĂŽnica, com suas sonoridades calorosas e precisas. Laurent Campellone, o maestro, diretor da Ăłpera de Saint-Ătienne, na França, desenrolou a longa tapeçaria musical interessado em cada detalhe e na pulsĂŁo do conjunto. Coros esplĂȘndidos -momento maravilhoso em que as troianas suplicam a Cibele que as salvem dos gregos. Grupo de dança entusiasta e vivo. Berlioz reviveu, magnĂfico, em Manaus.
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by Jorge Coli
Folha de S.Paulo